Em busca do suíngue

Pedro A. G. Batista

https://web.archive.org/web/20100213124608if_/http://batuca.no.sapo.pt:80/suingue/suingue_pt.htm

Conteúdo

Se estás com pressa , lê aqui um resumo do que é o suíngue

Introdução

A música está na essência de tudo aquilo que somos. Desde tempos imemoriais que inumeras espécies utilizam algum tipo de som para cumprir duas funções fundamentais: cortejar e marcar território. No ser humano então, além de cumprir também esses dois propósitos (acasalamento e demarcação de território), as origens da música estão de tal forma entrelaçadas com as origens da humanidade que se calhar a espécie humana nunca teria existido tal como é sem a música. Os instrumentos mais antigos que se conhecem terão talvez uns 65000 anos de idade, mas dada a complexidade desses instrumentos (por exemplo flautas), podemos admitir que a relação do homem com a música deve ser muito mais antiga, remontando talvez há uns 150000 anos atrás.Mas se não podemos saber em rigor muita coisa dessses tempos idos, podemos supor com confiança que a música começou por ser ritmo, primeiro observado na natureza e depois reproduzido a bater com os membros ou objectos como paus ossos, em outros objectos que ressoassem. Estes primeiros ritmos seriam  muito provavelmente acompanhados de movimentos sincronizados, e temos também o surgir também da dança.De facto, todos nós preservamos em nós o instinto que alia ritmo a dança, isto é, certos padrões rítmicos despertam inevitavelmente em nós um desejo de movimentar o corpo em consonância.

Desde há muitos anos que me pergunto o que é que faz certos padrões rítmicos evidenciarem esse instinto, e outros não. Porque é que certos rítmos provocam uma vontade irresistível de abanar o corpo, mover os pés e dançar? Porque esses ritmos contêm o que podemos chamar de swing (suíngue), ou balanço. Algo que todos sabemos reconhecer (o nosso instinto sabe) mas que dificilmente expressamos por palavras.

O trabalho que aqui apresento é o fruto da minha pesquisa natural sobre este tema, um trabalho incompleto, que não responde inteiramente à questão,mas procura desvendar alguns caminhos para tentar capturar e reproduzir alguns ritmos suingados. Em particular debruço-me sobre os ritmos brasileiros, que são reconhecidamente dos mais suingados do mundo. A origem do suíngue está no entanto em África, e o que dela resulta no Brasil é já uma versão um tanto ‘ocidentalizada’. No entanto esta versão pode até ser mais fácil de interiorizar, uma vez que a complexidade rítmica africana não é facilmente interpretável pelos nossos ouvidos pouco habituados a tamanha riqueza polirítmica.

Convenções

O ritmo que vamos usar nesta secção é escrito assim:

Fig.1 Oito pancadas (semi-colcheias) num compasso 2/4

Existe alguma polémica sobre se o samba deve ser notado em 2/4 ou 4/4. No nosso caso, para perceber o suíngue bastava analisar um dos tempos (isto é, um dos conjuntos de quatro pancadas/semicolcheias), mas como o samba tem obviamente uma pulsação binária (consequente da marcação e resposta do surdo) optei por seguir a notação em compasso binário, representando assim dois tempos do mesmo suíngue.

A figura acima representa um compasso binário (dois tempos), em que cada um dos tempos está dividido em quatro semicolcheias ou pancadas (vou usar o termo ‘pancada’ assumindo desde já que a gente vai querer bater esse suíngue com as mãos ou baquetas em qualquer lado :). 

Esta notação tem sido usada (à falta de melhor) para explicar o que é o samba, no entanto a informação relativa ao suíngue que esta representação transmite é quase nula, limitando-se à acentuação do primeiro e quarto tempos (representada pelos ‘sinais de maior’ por cima de algumas notas). Mas como verêmos mais à frente, o suíngue do samba, embora seja teoricamente possível de representar em notação musical, resulta pouco intuitivo no papel, e é muito mais facilmente apreendido na prática.

Por isso se você não compreende notação musical não se preocupe, não é necessária para compreender esta secção. Certamente você consegue acompanhar o tempo de uma música, batendo «UM — dois — três — quatro, UM — dois — três — quatro». É somente disso que se trata. Cada pancada tem duração igual a um quarto do tempo (uma semicolcheia), num total de oito pancadas. Se você tem alguma noção de samba, os instrumentos agudos tocariam as quatro pancadas, enquanto os surdos tocariam na primeira pancada.

Como é de samba que se trata, vamos puxar um bocadinho o tempo, contando o um-dois-três-quatro mais rapidinho. Se pensarmos num andamento de 120 batidas-por-minuto (bpm), então cada tempo tem que durar meio segundo, os dois tempos da figura acima têm que durar um segundo, ou seja, temos que contar «UM — dois — três — quatro, UM — dois — três — quatro» num segundo, e isto claro, num andamento ‘lento’ como 120bpm. Mas não se preocupem, a máquina conta por nós:

UM-dois-três-quatro contado a 120 b.p.m.

Daqui para a frente vamos usar um outro som para os exemplos sonoros. Trata-se de um som de referência composto à base de ruído, para não distrair e nos podermos concentrar nas nuances do suíngue.

1 compasso em 2/4 com zero suíngue e apenas ligeiro ênfase no 1

O que não é o suíngue

Vamos começar por perceber o que não é o suíngue.

Ouçam este sample. Foi programado de forma a consistir de 8 pancadas exactamente iguais, em termos de tímbre, intensidade sonora e duração. 

Analisemos mais em pormenor estas três características:

— o tímbre
como já dissemos não varia, pois usámos sempre o nosso som de referência.

— o volume
(a intensidade sonora da pancada) também não varia. Daqui para a frente usaremos o termo velocidade para nos referir a este factor: a velocidade com que se bate a pancada, resultando em maior ou menor
intensidade sonora.

— a duração
não varia, todas as pancadas são dadas exactamente a tempo, não se atrasando nem adiantando a mais pequena fracção de segundo (e dividindo cada tempo em quatro fracções iguais)

Claro que um ser humano não conseguiria produzir uma sequência tão exacta, mas podemos tentar
replicar este efeito, concentrando-nos em dar pancadas sucessivas exactamente com a mesma intensidade e duração. Vá, tentem lá 🙂

Como certamente já se aperceberam, este ritmo não é muito interessante, falta-lhe vida, falta-lhe alma, falta-lhe… suíngue!
Efectivamente numa escala de suíngue, esta sucessão invariável de pancadas, teria sem dúvida zero % de suíngue.

O que é o suíngue

Para compreender o que não era o suíngue, tivemos que restringir o som em três vertentes: tímbre, velocidade e duração. São estes três factores que participam na definição do suíngue, não só do suíngue do samba mas de todos os suíngues. Porque suíngue é exactamente a variação consistente em tempo e em velocidade, a partir de uma moldura rítmica rígida (o nosso exemplo inicial, representado ‘rigidamente’ em notação musical). São essas pequenas variações que tornam uma sequência repetitiva num gingado apelativo e dançável. Este suíngue é como uma interpretação rítmica, que se pode aplicar a qualquer frase musical, à maneira do swing do jazz, que também consiste num feel especial, aplicável na interpretação de qualquer trecho. 

Neste trabalho vamos apenas estudar as variações em velocidade e duração, mais directamente  responsáveis pelo suíngue, e mais fáceis de analisar. A incrível riqueza tímbrica do suíngue brasileiro, seria assunto para um outro trabalho mais vasto. 

Vejamos então como podemos variar de forma consistente estes dois factores, velocidade (ou amplitude sonora) e duração (ou tempo).

Quando nos referimos a variações consistentes, queremo-nos referir a que as mesmas variações são aplicadas à mesma pancada em cada tempo (lebrem-se que para efeitos deste trabalho, um tempo são quatro pancadas, um-dois-três-quatro). Se aumentamos a intensidade da primeira pancada, então temos que aumentar essa intensidade em cada primeira pancada de cada tempo (isto é, damos o «um» sempre mais forte).

Em termos de velocidade, podemos em cada tempo dar umas pancadas mais fortes do que as outras. Podemos por emxeplo começar por dar a primeira pancada mais forte, acentuar o «um» <sample: UM-2-3-4>. Ou podemos começar já a dar um cheirinho de samba, e enfatizar o primeiro e o quarto tempos <sample: UM-2-3-QUATRO>

Em termos de duração, podemos alongar (ou encurtar) uma das quatro pancadas do tempo. Como consequência, e como não queremos variar o tempo (a duração de cada tempo, isto é do conjunto das quatro pancadas, mantém-se inalterada), alguma (ou algumas) das outras pancadas terá que encurtar (ou alongar). Podemos por exemplo aumentar a duração da primeira pancada, diminuindo a das restantes três <sample: 34-22-22-22>. Reparam na subtil diferença? Ou podemos soar mais como samba pelo simples facto de aumentarmos a duração da primeira e da quarta pancadas, diminuindo a segunda e a terceira <sample: 30-20-20-30>. O suíngue já começa a aparecer.

Quando nos referimos a variações da duração da nota, poderíamos também referir-nos a desvios temporais de algumas notas. Se encurtarmos a duração da primeira pancada, a segunda pancada será consequentemente dada mais cedo, ou seja, é como se a segunda pancada tivesse sido desviada para trás no tempo. Na realidade podemos descrever o suíngue temporal usando qualquer das representações (variação na duração ou desvio no tempo), usei a que me parece mais intuitiva.

Vimos então como certas variações consistentes na velocidade e na duração das pancadas podem resultar numa primeira abordagem do suíngue.

Suíngue resultante de variações na velocidade

Suíngue resultante de variações no tempo

Uma primeira abordagem à quantificação temporal do suíngue, passa obviamente por ‘ir lá ver’. Para isso analisei vários samples de percussão brasileira, e registei o instante temporal em que cada pancada é dada. A partir desses dados obtive as durações de cada pancada. Cada pancada foi então medida à proporção da duração de cada tempo, e são esses resultados que são apresentados. Como as durações dos vários tempos vão oscilando ligeiramente ao longo de cada sample, eu abstraí-me desse facto comparando cada pancada com a duração do respectivo tempo. A análise das flutuações a nível de andamento (acelerar ou atrasar o tempo), e de opções estéticas como tocar à frente ou atrás do tempo, são também interessantes mas noutro contexto. Aqui o que nos interessa é o suíngue, e para isso concentramo-nos nos grupos de quatro pancadas e nas suas proporções relativas.

Os samples apresentados são um tamborim (4 tempos), um pandeiro (2 tempos), uma caixa (8 tempos), um repique tocado com as mãos (8 tempos) e um extracto de um enredo da Mocidade (4 tempos) na parte introdutória, lenta. Não é necessário analisar muitos samples, pois torna-se aparente que todos dizem mais ou menos o mesmo, no entanto procurei que fossem todos suingados, para obter uns números consistentes. Ouve-os e dá-me a tua opinião. Todos os samples estão cortados para tocar em loop, mas talvez precises de um programa de edição de audio (como o CoolEdit) para consiguir ouvir um loop perfeito, pois Media Player’s, Winamp’s, e outros do género engasgam ao reiniciar o loop.


Tamborim

Vamos começar por analisar um sample de tamborim que eu gravei: 

Limitei-me a tocar o ‘tecoteleco-teco’ simples, durante quatro tempos.

Se inspeccionarmos a forma de onda resultante, verificamos que o espaço entre pancadas sucessivas não é uniforme:

Fig.2 Tamborim, quatro tempos

O que isto significa, é que há que introduzir um certo balanço na sucessão de semi-colcheias, para conseguir aquele efeito enrolado, característico do samba, que dá logo vontade contagiante de mexer.

Vejamos com mais atenção o sample de tamborim. Aqui está apenas um tempo, com as marcas verticais a identificarem onde seriam os tempos exactos (as semi-colcheias):

Fig.3 Tamborim, um tempo

Numa análise visual, constatamos que a primeira e a quarta pancadas duram mais do que seria uma semi-colcheia, enquanto a segunda e a terceira são notoriamente mais curtas.

Uma análise estatística às durações das pancadas deste sample, revela:

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
27.0%
28.5%
27.6%
2
16.4%
17.0%
16.6%
3
22.2%
24.2%
23.5%
4
30.8%
33.8%
32.3%
 

Tabela 1
Percentagens do tempo por pancada no tamborim

A primeira pancada dura mais do que a semi-colcheia (25%), tal como a quarta pancadas que sendo dada muito adiantada (antes do tempo) tem uma duração muito superior, quase uma tercina (33%). O oposto acontece com a segunda e terceira pancadas, ambas inferiores a um quarto do tempo. A segunda pancada em especial é muito curta, com pouco mais de metade do que seria uma semi-colcheia exacta.

Já aqui nos surge uma das dualidades do samba, de que voltarei a falar mais à frente: as pancada alternam e compensam-se em pares simétricos: a primeira com a terceira (uma um pouco mais longa, outra um pouco mais curta), e a segunda com a quarta (uma muito curta e outra muito longa).


Pandeiro

Vejamos agora um sample de pandeiro: pandeiro.wav (24K).

Fig.4 O sample de pandeiro

Tal como no sample de tamborim, o espaçamento entre as notas não é uniforme. Confirmamos aqui um dos requesitos do suíngue sambista (na verdade de qualquer suíngue): que as notas não tenham uma duração exacta de uma semi-colcheia, mas que se desviem do instante exacto, umas vezes para depois, outras para antes do tempo. A medida desse afastamento não é aleatória, mas já lá vamos.

Fazendo a mesma análise estatística às batidas do pandeiro obtemos:
 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
27.3%
28.4%
27.9%
2
15.9%
16.7%
16.3%
3
22.8%
26.0%
24.4%
4
30.8%
32.0%
31.4%

Tabela 2
Percentagens do tempo por pancada no pandeiro

Verificamos que há uma grande semelhança entre os valores médios para o pandeiro e o tamborim. Confirmamos que o primeiro e especialmente o último tempos são prolongados, enquanto o terceiro e especialmente o segundo tempos são encurtados.


Caixa

Este sample de caixa é um exemplo perfeito de uma levada suingada: caixa.wav (86k). Analisando a sua estatística,
 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
26.8%
31.5%
28.4%
2
13.8%
17.2%
15.6%
3
21.8%
25.7%
24.1%
4
29.4%
33.4%
31.6%

Tabela 3
Percentagens do tempo por pancada na caixa

notamos mais uma vez que os resultados se aproximam, confirmando os dos samples anteriores. A segunda pancada atinge o valor mais breve dos samples apresentados, com um mínimo de 13.8%, mas isso explica-se facilmente, primeiro porque, penso que concordas, este é o sample mais suingado de todos que aqui aparece, e depois porque, tal como já disse, a quantidade de desvio temporal não é aleatória: há que saber o suíngue, e dá-lo ao máximo!

Mais à frente falaremos da técnica em mais pormenor, mas se a quarta pancada é a mais importante no samba, a segunda, vem logo atrás, sendo talvez mais difícil de dar bem. Não é de espantar que estes tempos importantes no samba (o 2º e o 4º tempos) sejam tempos fracos, ou contratempos. É a ênfase nos tempos fracos que distingue a música de raíz africana.


Mãos

O sample seguinte foi tocado com as mãos (ou melhor, com os dedos) num repique: maos_repique.wav (82k).

Será que o suíngue continua a seguir as mesmas linhas?
 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
22.1%
30.6%
25.5%
2
14.4%
19.6%
18.1%
3
21.7%
28.3%
24.2%
4
28.4%
35.5%
32.3%

Tabela 4
Percentagens do tempo por pancada com as mãos

Com efeito, embora este sample tenha um feeling um pouco diferente (mas mesmo assim suingado, por isso o escolhi), os valores medidos estão de acordo com a estatística geral. Não se pode presumir que uma mera análise estatística diga algo acerca do samba na sua enorme riqueza. Aqui apenas podemos retirar conclusões gerais, para sabermos no que nos devemos concentrar caso queiramos melhorar a técnica.

Verificamos neste exemplo que o suíngue é elástico, podendo esticar mais ou menos para fora da sucessão certinha (que era não ter suíngue nenhum), e continuar mesmo assim a ser suíngue. Podemos tocar mais fechado, apertado, ou mais aberto, solto, e podemos (e devemos) variar, não só em padrões (as ‘notas’ que tocamos), mas também em suíngue, usando o balanço de forma criativa, como mais um recurso expressivo.


Bateria (andamento lento)

Finalmente vamos analisar uma bateria completa a tocar: bateria_mocidade.wav (63k).

Este sample é da bateria da Mocidade, no entanto é do início da música, a introdução em tempo lento. Desta forma podemos também analisar o que sucede ao suíngue em tempos mais lentos.
 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
25.0%
25.8%
25.6%
2
22.0%
24.7%
23.1%
3
22.6%
26.5%
24.4%
4
25.5%
27.9%
26.9%

Tabela 5
Percentagens do tempo por pancada para bateria (andamento lento)

Uma primeira inspecção, revela que todos os tempos se aproximam mais dos valores exactos da semi-colcheia (25%), deixando de haver discrepâncias tão grandes. Mesmo assim continua a verificar-se que o primeiro e o quarto tempo são prolongados, e o segundo e o terceiro são encurtados, mantendo-se ainda o quarto tempo como o mais longo, e o segundo como o mais curto. O desvio em cada tempo é agora muito menor, mais subtil, o que pode explicar a maior dificuldade em conseguir um bom suíngue em andamentos lentos. É necessária mais técnica, para fazer bem e bem devagar (e como aparte, o mesmo é valido para ‘mais baixo’).


Estatística Geral

Para termos uma ideia geral apresento a seguir uma estatística que resume os valores de todos os instrumentos estudados até aqui. Os valores gerais estão apresentados de três formas: todos juntos, todos menos o da Mocidade e todos menos os meus. Assim temos um termo de comparação melhor.

todos os samples
sem o da mocidade
semos meus
27.0%
27.4%
27.3%
17.9%
16.7%
18.4%
24.1%
24.0%
24.3%
30.9%
31.9%
30.0%

Tabela 6
Média geral dos tempos

Adicionalmente podemos ainda ver os picos, isto é, os valores mínimos e máximos nos exemplos presentes: 

mínimo
máximo
25.5%
28.4%
15.6%
23.1%
23.5%
24.4%
26.9%
32.3%

Tabela 7
Máximos e mínimos gerais

Pela análise destes resultados, podemos caracterizar analiticamente o micro-ritmo do samba, da seguinte forma:

  • o primeiro tempo é ligeiramente prolongado, mais ou menos consoante as situações o segundo tempo é o mais curto, chegando a ser muito curto, 13 -14%, quase metade do que seria a sua duração normal (compensa o quarto tempo)
  • o terceiro tempo é ligeiramente encurtado (compensa primeiro tempo)
  • o quarto tempo é o mais longo, bastante maior do que uma semi-colcheia, quase um terço do compasso (uma tercina)

Este equilibrio entre as durações, que se compensam em pares (obviamente que no fim tem sempre que dar o tempo inteiro) pode ser mais ou menos esticado, desde termos um suíngue diluido de 26%, 23%, 24%, 27%, próprio para andamentos lentos e batidas intimistas, a casos extremos de suíngueira como 30%, 14%, 23%, 33%, para aquele partido de primeira. Quanto às dualidades que parecem evidenciar-se, entes os dois tempos fortes (primeiro/terceiro) e os dois tempos fracos (segundo/quarto), que parecem compensar-se nos desvios que apresentam, estou convencido que é este o dínamo impulsionador da cadência do samba. É a alternância do forte e do fraco, e dos ênfases que se dá neles por via dos desvios temporais que já analisámos, que gera o movimento, a emoção, a alternância do yin e do yang, a dança (hei, vais ficar quieto?) e resumindo numa palavra: o SUÍNGUE !!! 


Conselhos Técnicos

Podemos então extrair algumas propriedades do balanço:

  • É a alternância de pancadas encurtadas e pancadas alongadas que gera movimento e provoca vontade de dançar. Numa sucessão uniforme de pancadas não há qualquer movimento transmitido. No entanto basta criar um balanço nesta sequência, encurtando umas pancadas e aumentando outras, de forma repetitiva consistente, para que esta série passe a transmitir movimento. E é isso que contagia no ritmo do samba
  • Durante as três pancadas iniciais, o ritmo parece abrandar, como se fosse parar gradualmente, mas a quarta pancada, como é tocada antes do tempo, volta a acelerar o ritmo, dando mais ânimo. Daí aquele efeito de pára-arranca característico do samba. Para conseguir este efeito, é importante gingar o corpo ao mesmo tempo que se toca. Se prestares atenção a alguém que saiba tocar, verificas que há estes ligeiros gingados acompanhando o suíngue.
  • A quarta pancada é a mais importante, sendo sempre acentuada. Esta acentuação é ainda mais reforçada devido a ser dada antes do tempo. Como consequência esta pancada atinge quase a duração de um terço do tempo.
  • A segunda pancada é também muito importante, pois sendo um contratempo exige que seja evidenciada, e sendo muito curta torna-se difícil de dar correctamente.

E alguns conselhos técnicos:

  • A primeira batida não precisa de ser forte. Já é o momento mais forte. Apenas tão forte quanto o necessário para fazer a marcação.
  • Na segunda e terceira batidas, deixa morrer suavemente, mas mantem o enrolado. A segunda pancada é em geral muito curta, depois da pausa que há após a primeira pancada é preciso acelerar para chegar a tempo ao fim do compasso, e é este acelerando (com a tal ginga) que impulsiona o suíngue.
  • A quarta pancada dá-a bem forte, puxando de novo pelo ritmo, e bastante antes do tempo (por isso não fiques à espera da altura ‘certa’).
  • Finalmente o conselho mais importante: Deixa o samba rolar! É tudo o que é preciso 🙂

 


Reprodução dos Resultados com uma Caixa-de-Ritmos


A Invenção do Samba

Vamos agora tentar perceber como este suíngue particular pode ter sido inventado. Primeiro que tudo, deixem-me dizer que não tenho nenhuma fundamentação histórica ou de qualquer género para as deduções que aqui apresento. Esta é apenas uma explicação, a meu ver plausível, de como este balanço pode ter sido inventado. De qualquer maneira, não saber do assunto nunca impediu ninguém de publicar as mais variadas opiniões (hei, e isto é a internet), e após esta pequena ressalva, é o que vou passar a fazer também.


Um pouco de história

Quando os portugueses chegaram ao brasil, iam em busca de ouro e pedras preciosas, no entanto não acharam o que buscavam durante vários anos. Acharam sim um outro tesouro, a cana de açucar, mas quando tentaram escravizar os indios locais para esses trabalhos, verificaram que eles não tinham resistência. Os portugueses começaram assim a levar escravos negros das suas colónias em Angola para trabalhar nas plantações de cana no Brasil. Os escravos levados eram provenientes de dois eixos culturais africanos: o eixo Angola-Kongo, e o eixo Nigeria-Benim, berços de duas culturas distintas, e que levaram para o brasil as duas tradições musicais de onde surgiria mais tarde tudo o resto: a capoeira (Angola) e o candomblé (Nigeria).

Nessa altura, os navios portugueses percorriam um triângulo comecial e cultural, com vértices em Cabo-Verde (que servia como ponto de escala para os navios que vinham ou iam para Portugal), Angola e Brasil. Os navios que circulavam nesse triangulo levavam consigo não só a sua preciosa carga como também os cantares e as danças que estavam na moda num ponto ou noutro. Na verdade todos os vértices deste triângulo cultural (Portugal, Angola, Brasil) influenciaram e foram influenciados pelos restantes dois. Não só as músicas e danças portuguesas sofreram influencia das musicas e danças africanas, como o contrário também aconteceu. O mesmo se pode dizer da musica brasileira em relação à portuguesa e africana

Primeiro que tudo parece-me provável que a origem deste microritmo seja anterior à ida dos escravos africanos para o Brasil. Como todos os ritmos que se prezam, este deve ter nascido em África, anos ou séculos antes de algum africano pôr o pé no Brasil. No entanto foi a preservação deste (e outros) ritmos ancestrais, pelos povos de Angola e Congo que os portugueses levaram para o brasil, e o uso que esses povos fizeram dos instrumentos introduzidos pelos portugueses, como o pandeiro, a caixa, o cavaquinho, bem como de outros que inventaram, ou reinventaram, que deu origem ao samba, tal como o conhecemos.

Mesmo no Brasil, para onde foi levado pelos descendentes africanos, este ritmo manifestou-se de variadas formas, estando na origem de vários ritmos brasileiros, não apenas do samba. No entanto foi o samba que o popularizou e lhe deu projecção (para sorte nossa).

O que eu agora proponho, são duas possíveis formas de explicar como este microritmo particular pode ter sido inventado (ou descoberto?).

A primeira parte da constatação de que esse ritmo existe naturalmente na natureza, quando usamos uma técnica de batuque que emprega dois ingredientes fundamentais que passo a descrever.

A baqueta

Vamos começar por analisar como um baterista faz uma ‘tripla pancada’ na pele do tambor. Quando batemos com a baqueta na pele, ela salta de novo para cima, devido à elasticidade da pele. Se continuarmos pressionando a baqueta para baixo, usando o pulso, ela vai bater de novo na pele, e de novo vai saltar. Continuando a forçar a baqueta para baixo, resulta em mais pancadas, aumentando em rapidez, e diminuindo em altura de som. Com esta técnica, que não é novidade nenhuma, é possível fazer uma tripla pancada no tambor, usando o ressalto natural da pele.

Esta técnica é usada por exemplo no tamborim, no repique e na caixa, e usa apenas as leis da física para facilitar dar três pancadas. Fisicamente é mais ou menos o mesmo que ter uma bola pulando no chão: a altura a que ela chega vai sendo progressivamente menor, e o intervalo entre pancadas sucessivas vai ficando mais curto. Além disso, a cada nova colisão a bola tem menos energia, pelo que também o barulho produzido é cada vez menor. A diferença é que há uma pressão para baixo da bola/baqueta, que acelera a sucessão de ressaltos.

Fig.5 Uma
bola pulando sobre as três primeiras pancadas

De volta ao nosso samba, considera então que as três primeiras batidas são dadas desta maneira, usando a baqueta. Então isso parece encaixar no nosso modelo de suíngue, pois a duração de cada pancada vai diminuindo, e o som vai ficando mais baixo. Como consequência da nossa pressão para baixo, a segunda pancada vai ficar muito curta, como já tinhamos observado nas análises de samples.

Temos assim uma forma simples de obter um ritmo que respeita o espaçamento característico das primeiras três pancadas do suíngue. Só nos falta a quarta pancada, mas isso leva-nos ao segundo ingrediente. 

A mão

A quarta semi-colcheia do tempo, é quando a mão toca. Como qualquer tocador de repinique poderá dizer, a mão marca a pancada mais importante do tempo. É esta quarta pancada que dá ao samba aquela sensação de enrolado, e de estar sempre puxando prar a frente, ‘caindo’ para o tempo seguinte. Se não acreditas, experimenta tocar apenas a primeira e a última semi-colcheias do tempo, e diz-me se isso não faz logo lembrar o samba.

Esta quarta pancada é responsável pela maior parte da força do samba, e não somente é acentuada, como é dada antes do tempo (confere na Fig.3). Isso coloca algum problema para pessoas dextras, pois esta pancada é tocada com a mão menos forte. Para desenvolver técnica é conveniente se concentrar nesta mão, de forma a desenvolver força e resposta rápida. Apenas tocando esta quarta pancada bem estalada e com um bom empurrão, é que vai soar bem.

Mas donde vem essa ênfase na quarta pancada? A música africana tem este ênfase nos tempos fracos, e o quarto tempo, sendo o mais fraco, acaba por ser o mais importante para conferir suíngue. Podemos ver como esse quarto tempo é evidenciado neste ritmo bem conhecido africano (a clave africana?):

Fig.6 Comparação
entre a) a «clave africana» e b) o ritmo de samba

A pancada mais importante está situada na quarta semi-colcheia do tempo. Esta pancada por si só, dá uma sensação sincopada, característica de contratempo.


Baqueta e mão ou poliritmos?

Vimos portanto que o balanço do samba se obtém naturalmente tocando um tambor com uma baqueta da forma descrita, usando o ressalto, e acrescentando uma quarta pancada com a mão (ou outra baqueta).

É possível que o balanço que conhecemos como suíngue, resulte desta forma de tocar, uma técnica que pelas próprias leis da física reproduz o suíngue exacto que andamos à procura. Os restantes instrumentos limitaram-se a reproduzir um balanço que nesta técnica era natural.

Mas vejamos a segunda hipótese. África é um continente com uma riqueza rítmica imensa, em grande medida devido aos polirítmos, a sobreposição de dois ou mais rítmos simples com uma métrica distinta (por exemplo um rítmo binário com um rítmo ternário). O polirítmo primordial é exactamente o polirítmo 2-por-3, que consiste na sobreposição de uma divisão binária com uma divisão ternária do tempo. Podes experimentar tocar a divisão ternária com a mão direita e a divisão binária com a mão esquerda:
 

1 2 3 4
D D D
E E
. . . . . . . . . . . .

D =
pancada com a mão direita, 
E = pancada
com a mão esquerda
Ora como já vimos, o suíngue do samba é quase ternário. Como a primeira e a última pancada têm uma duração quase igual a uma tercina, basta omitir a terceira pancada para obtermos um ritmo praticamente ternário (isso até acontece na prática, por exemplo ao tocar tamborim demasiado rápido começa a soar a tercinas). 

De certa forma então, obteriamos algo de parecido com samba pela sobreposição de um ritmo binário (duas pancadas por tempo) com um ritmo ternário (três pancadas por tempo).

Fig.7 Comparação
do suíngue de samba com polirítmo 2×3

Embora neste diagrama as pancadas do samba não coincidam exactamente com as divisões do poliritmo, há que ter em conta que os polirítmos eram eles próprios dados com suíngue, afastando-se mais ou menos das durações exactas que estão representadas na figura anterior. O facto é que se escutarmos com atenção o polirítmo 2-por-3, conseguimos ouvir nele o padrão de samba, ou algo semelhante.

Pode ter sucedido que a fusão deste ritmo com as marchas portuguesas, essencialmente musica a tempo, tenha perdido a caracteristica poliritmica e apenas tenha conservado o suíngue. Ou talvez os escravos que tocavam os instrumentos trazidos pelos portugueses, incorporando esses instrumentos na sua antiga tradição africana, se tenham preocupado em capturar o efeito enrolado do poliritmo, mas usando apenas um instrumento para dar o ritmo completo (os polirítmos eram tocados com varios tambores, cada um dando um ritmo basico).

É difícil saber, gostaria de ter uma perspectiva histórica de alguém que conheça estas matérias a fundo, mas de momento apenas me posso limitar a adivinhar. De uma forma ou de outra, acho que um ponto é consensual: este ritmo tem as suas origens na profunda riqueza dos tambores africanos.


Partido Alto: A Clave Brasileira

Compreender o suíngue do samba é apenas parte da questão. A riqueza rítmica do samba assenta num outro grande pilar, que é o padrão do partido alto, que eu aqui denomino de clave brasileira.

O ritmo do partido alto é, na sua forma mais básica, o seguinte:

Fig.8 Partido
Alto, em pauta e em notação linear

A nota entre parentesis não faz parte da clave de partido alto (é já um ornamento), no entanto inclui-a, pois além deste tempo na prática se dar quase sempre, serve para evidenciar o ponto seguinte.

Observando o ritmo anterior, reparamos num pormenor importante, que pode explicar parte do seu interesse: temos alternadamente dois compassos a tempo (no 1 e no 3) e dois compassos a contratempo (no 2 e no 4).

Fig.9 Partido
Alto, com tempos e contratempos

Portanto o partido alterna compassos a tempo (dois tempos a tempo) e compassos a contratempo (dois tempos a contratempo). Tal como já tinhamos observado no suíngue do samba, em que alternavamos pancadas alargadas, com pancadas diminuidas, esta alternância cria movimento e interesse, e a prova está aí, para quem quizer ouvir.

Outro aspecto interessante, é que o ritmo do partido pode começar em qualquer dos compassos, o que resulta em duas variantes, ou inversões do ritmo básico. Na prática, podemos acompanhar o partido alto usando qualquer uma das inversões.

Além disso ambas as inversões podem ser sobrepostas, e muitas vezes são (por exemplo em certos pagodes com dois pandeiros, um faz um acompanhamento derivado de uma inversão, e o outro acompanha com padrões derivados da outra).


Conclusões


Apêndice — Medições

A seguir detalham-se os dados estatísticos completos, que estiveram na base da análise quantitativa do suíngue.


tamborim.wav (64k)

 

1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
27.0%
17.0%
22.2%
33.8%
27.1%
16.4%
23.8%
32.7%
28.5%
16.5%
24.2%
30.8%
27.9%
16.4%
23.9%
31.8%

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
27.0%
28.5%
27.6%
2
16.4%
17.0%
16.6%
3
22.2%
24.2%
23.5%
4
30.8%
33.8%
32.3%

 


pandeiro.wav (24k)

 

1
2
3
4
1
2
3
4
28.4%
16.7%
22.8%
32.0%
27.3%
15.9%
26.0%
30.8%

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
27.3%
28.4%
27.9%
2
15.9%
16.7%
16.3%
3
22.8%
26.0%
24.4%
4
30.8%
32.0%
31.4%

 


caixa.wav (86k)

 

1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
4
29.6%
15.3%
25.7%
29.4%
27.3%
16.6%
23.8%
32.3%
27.6%
17.2%
23.4%
31.7%
27.2%
41.5%
31.2%
29.2%
15.6%
24.4%
30.8%
28.1%
15.3%
25.3%
31.3%
31.5%
13.8%
21.8%
32.9%
26.8%
39.8%
33.4%

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
26.8%
31.5%
28.4%
2
13.8%
17.2%
15.6%
3
21.8%
25.7%
24.1%
4
29.4%
33.4%
31.6%

 


maos_repique.wav (82k)

 

1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
27.6%
18.0%
23.9%
30.4%
24.4%
18.5%
23.2%
33.9%
30.6%
14.4%
24.0%
31.0%
23.2%
19.6%
21.7%
35.5%
26.1%
17.4%
25.2%
31.2%
22.1%
19.3%
25.1%
33.4%
24.5%
18.7%
28.3%
28.4%
25.3%
18.6%
21.9%
34.3%

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
22.1%
30.6%
25.5%
2
14.4%
19.6%
18.1%
3
21.7%
28.3%
24.2%
4
28.4%
35.5%
32.3%

 


bateria_mocidade.wav (63k)

 

1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
1
2
3
4
25.0%
24.7%
24.0%
26.3%
25.6%
22.0%
24.5%
27.9%
25.8%
23.6%
22.6%
27.9%
25.8%
22.2%
26.5%
25.5%

 

Tempo
Mínimo
Máximo
Média
1
25.0%
25.8%
25.6%
2
22.0%
24.7%
23.1%
3
22.6%
26.5%
24.4%
4
25.5%
27.9%
26.9%

 


©
Pedro A. G. Batista 2001-2002